Quando comecei a namorar a Gabi, ela fazia curso de trapézio na Fundição Progresso. E ela já vinha radiante e transformada de uma oficina de palhaçaria conduzida pelo Messiê, nosso querido Márcio Libar. Ela parecia uma personagem de “Asas do Desejo”, leve e grave ao mesmo tempo. Toda sexta-feira eu ia buscá-la na roda de samba da praça 15 e ali no Velho Rio encontrava um Rio novo, ao menos pra mim que, apesar de alguns bons anos de ladeira carioca, mantinha impávido a paulicéia desvairada de outros tempos. Morena, conhecedora profunda da música brasileira (crítica implacável nesse quesito), me fascinava vê-la sambar cantando todas as canções da roda. No Acre, de colar indígena enfeitando o colo, essa morena ganhava subitamente um porte de amazona sertaneja. Ela adora Marília, meu sotaque caipira, meus repentinos trejeitos de caboclo matuto e minhas expressões caricatas.
Delicadamente ela já fazia parte de um monte de coisas importantes, era amiga dos meus melhores amigos, Pipo e Dú. Gostávamos dos mesmos programas: cinema Paissandú e Cartoon Network. Era quase íntima do Gregório, nosso venerável mestre contador de histórias, e despertava um carinho incrível na Lúcia (por quem tenho um carinho incrível) do Paço Imperial. No mais, apreciava a gororoba que eu fazia (que sem deixar de ser gororoba, era apreciável) e assim foi indo, lindo.
Foi eu que lhe apresentei Arnaldo Baptista e Sérgio Sampaio. Mas de uma hora pra outra era eu que reaprendia a ouví-los na percepção refinada de sua escuta. Ainda hoje Singing Alone é o disco que mais toca em casa.
Uma vez me vendo triste, já quase meia noite, me levou pra conhecer sua praia preferida, Itaquatiara, à quase duas horas de ônibus. Essas pequenas coisas se fazem grandes ao longo do tempo. Um dia fiz uma besteira e quis terminar com ela. Quase morri e já no dia seguinte estava eu lá, buscando-a na UFF. Foi na UFF que nos conhecemos. Eu, glaubególatra, dava um curso sobre Glauber Rocha e a vi entrar na sala com um sorriso tão puro e aberto que despertava a libido. Pra conhecê-la, conheci um monte de gente legal, dentre os quais Tales Cosmos e André e hoje minhas amigas também: Vanessa e Bebel. Passei a respirar nessa atmosfera. Só não aprendi à sambar, mas dou meus pulos. Me inscrevi na oficina de palhaços e foi assim que o “Seu engraçadinho” se casou com a “Dona dengozinha”. Cheguei a inventar um palhaço, o “volverino” (wolverine + severino) pra sair pelas ruas em companhia do Matraca, mas o ofício era sério demais pra mim.
Tudo nessa canção é pra ela. São polaroids que a lembrança vem acumulando desses já oito anos juntos. A espiã russa que me contava os bastidores dos artistas, a universitária militante que repentinamente elege o Quebéc e eu lobisomen, profundamente sensível aos raios dessa lua. Porquê do título? É que uma das coisas que eu mais gosto nela é sua vozinha desafinada. Fina e rouca ao mesmo tempo, tem sutis variações de timbre que expressam todo o seu humor, ou mal-humor. E na medida em que essa voz se esgarça, sei que ela está feliz e então, fico feliz. Um dia, ouvindo-a cantar Cunhataiporã de Tetê Spíndola, descobri a receita de sua voz: Tetê + Clementina de Jesus. E não é que essa mistura é tão mágica que eu até achei depois no YouTube um dueto comovente das duas.
Tuas dúvidas, tuas dádivas, tuas dívidas, tuas lágrimas
serão minhas se você me fizer tua ilha,
tua escolha, tua história escrita, tua outra medida
tua boca, minha fruta, quero outra vitamina
diz que vai pra Cuba como quebecoise latina
corre, atende, é o meu coração cliente te esperando na linha
segue à risca, trapezista, a corda bamba, dorme exausta,
astronauta, minha russa
espiã dos artistas
minha gata malagueta, a salada da minha vida
apimenta, porque eu quero é queimar minha língua
nessa sopa que é tua roupa dormida
acorda margarida, flor do dia, ri de tudo, tudo rima,
faz um drama, chora a pampa, cansa e vai pro samba e no coro
se esquece do choro
vira fruta em minha boca, dá uma volta e vira outra
pega e some como se eu fosse teu lobisomem
pega e some como se eu fosse teu lobisomem,
e aparece como o sol que acontece, porque sempre acontece...
credits
from Disquinho de Bolso,
released September 16, 2009
Batone: voz, guitarra e violão
Mizão: guitarras e efeitos
Joe Parker: baixo
Érick Moura: piano e teclados
Stephan Drummond: bateria
Oliver Drummond: guitarra
Eco-anarco-humanista, glauberiano com ascendente em escorpião.
Um ex-fantoche, um faminto índio das cavernas, um loboguará do Velho-Oeste Paulista e, antes de tudo, um ente que se quer presente.
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